segunda-feira, 23 de março de 2015

PORQUE MUITOS SÃO CONTRA QUE A CAPOEIRA SE TORNE UMA PROFISSÃO REGULAMENTADA?

Por mestre Pop

A discussão acerca da criação, por lei, da profissão de mestre e educador de capoeira, está sendo levantada em todo o país, neste momento que antecede o III Congresso Nacional Unitário de Capoeira. As posições se dividem e embora muitos sejam a favor, outros tantos são contra. Trago aqui meu testemunho e apresento as razões pelas quais sou a favor da criação, oficialmente, da profissão de capoeirista e das impressões que tenho com relação àqueles que se colocam contrários a isto.
Em minha experiência de 37 anos como educador da capoeira, nunca fui valorizado enquanto profissional dentro da minha área de atuação, justamente por não ter minha profissão regulamentada por lei. Quando digo valorizado, é reconhecido de fato, como qualquer outro profissional. Em minha carteira de trabalho, assinada desde 1978, não consta em nenhum registro a palavra capoeira, sendo que nestes anos todos trabalhei com a capoeira. Na mesma consta mestre de oficina (artesanato), professor, orientador de atividades e oficineiro (professor de dança). Porém, nunca mestre de capoeira. E vocês sabem o por quê? Simplesmente porque um mestre de capoeira não existe para o sistema, não é nada perante as instituições, sejam elas universidades, escolas ou qualquer outro tipo de instituição.
Trabalhar profissionalmente, eu já trabalho a quase 40 anos. A luta pelo reconhecimento do meu ofício é um anseio não somente meu, mas de muitos mestres de capoeira que dedicaram suas vidas a essa atividade e no entanto, não têm o reconhecimento legal de seu ofício. O que reivindico é um direito que todos os trabalhadores têm. E porque muitos são contra que nós que vivemos da capoeira, tenhamos nossa profissão reconhecida? Em minha avaliação, é porque em sua maioria não vivem da capoeira; e parte dos que vivem são contra, pois transformaram a capoeira em “poesia”, “conto”, uma coisa “mágica” e “folclórica”. Permanecem presos a um tempo passado, muitas vezes imaginário e mitificado, filosófico e ideológico; e outros, por insegurança e desconhecimento da legislação que regulamenta as profissões.
Muitos dos que se opõe a regulamentação da atividade de capoeira, têm certo temor de ficarem submetidos a um órgão fiscalizador. O fato é que isto não procede, pois uma profissão pode ser reconhecida e regulamentada sem ter de se submeter à gestão do terceiro setor (federações, confederações, conselhos e outros), mas sim apenas obter legitimidade através do registro junto ao Ministério do Trabalho. Daí vai da forma como a lei é redigida e eu particularmente defendo que a capoeira seja regulamentada a partir da perspectiva plural e transdisciplinar, contemplando-a em sua diversidade, sem privilégio de uma vertente sobre outra e sem a regência de nenhum tipo de órgão controlador e fiscalizador.
Há aqueles, que assim como eu, dependem da capoeira para viver e ainda assim não são a favor que esta se regulamente. Isso porque vivem no passado, presos a um tempo histórico que ficou para trás. Dizem que capoeira não é comércio, não é mercadoria, mas muitos fazem uso das políticas públicas de incentivo à capoeira, oferecidas pelo governo e ganham dinheiro com isso. Ganham dinheiro com pontos de cultura, prêmios de incentivo e programas semelhantes. Não estariam estes também, comercializando a capoeira? Não seria a cultura, nestes moldes, uma espécie de mercadoria? Penso que o que temos que refletir, com muita cautela e muita profundidade, é que a capoeira hoje, não é a mesma capoeira de outros tempos. Não se trata de defender a comercialização de nossa arte, longe disso, mas sim a tomada de consciência que as necessidades dos capoeiristas mudou, a realidade da capoeira mudou. A capoeira hoje já é praticada nos mais diversos países. A realidade de hoje, não é a mesma de 30 ou 40 anos passados.
Antigamente, os capoeiristas tinham que ter outra profissão para poder sobreviver, pois era muito difícil viver apenas da capoeira. Hoje este cenário está mudando aos poucos e com o reconhecimento e incentivo de sua prática por parte do estado, devido especialmente ao seu tombamento como patrimônio nacional e da humanidade, já se poderia sim viver da capoeira, se o profissional fosse reconhecido tanto quanto é a capoeira. A capoeira está sendo ensinada em praticamente todas as escolas de ensino fundamental em todo o país. Porém, nós, profissionais detentores deste precioso saber, temos de entrar nas escolas “pela janela”, pela “porta dos fundos”, e nos submetermos a trabalhar sob contrato de voluntariado. Isso tem que mudar! Isso está errado! Se a capoeira é tão importante, que é reconhecida como um patrimônio da humanidade, porque os responsáveis por propagar este saber têm que viver na invisibilidade enquanto profissionais?
Eu, nestes quase 40 anos de ensino de capoeira, nunca parei. Não fui fazer uma universidade, pois sempre acreditei na capoeira como profissão. Fica evidente para mim neste momento, que a grande maioria dos praticantes de capoeira que são contra a formalização da profissão, não dependem da capoeira para viver. Não são verdadeiros profissionais da capoeira, mas sim profissionais de outras áreas que também dão aulas de capoeira, muitas vezes por prazer e hobbie. São advogados, professores de educação física, de história, geografia, médicos, sociólogos, etc. Estes, quando perguntados sobre qual a sua profissão, sem sombra de dúvidas responderão: professor universitário, advogado, médico, dentista, mesmo que dêem aulas de capoeira, para se satisfazerem enquanto militantes da capoeira.
Não me oponho de forma alguma a quem dá aulas de capoeira por identidade, pois reconheço o valor destes profissionais e da contribuição que dão à capoeira, mesmo que não dependam da mesma para viver. Também não me oponho, de forma alguma, que os profissionais da capoeira façam universidade. O que me indigna é ver e ouvir pessoas que tem já suas profissões e que não vivem da capoeira, se posicionarem contrários a sua regulamentação, sem ao menos terem argumentos sólidos para suas posições. Estes são contra, pois não são relegados à informalidade, como quem vive exclusivamente desta atividade.
Há muitos casos em nosso meio, de professores de capoeira que só dão aulas em determinadas escolas por serem profissionais da área de educação física.  Estes, com o devido respeito, não deveriam se considerar profissionais da capoeira, pois o que lhe garante o emprego é o diploma universitário e não o saber popular e ancestral tão citado e teoricamente valorizado por muitos, inclusive pelo estado. O saber dos mestres não vale nada para a sociedade e lamentavelmente, em muitos casos, nem mesmo para os próprios capoeiristas. O que vale é o diploma universitário. Temos que mudar isto!
Imaginem o que é você dar aulas de capoeira em uma instituição formal e ter de ser registrado como oficineiro de dança. Ter de ser submetido à diversos cursos de capacitação em dança. A resposta que sempre ouvi, quando contestava ter de me capacitar em outra área, é que ser mestre de capoeira não é profissão, que não existe este quadro na instituição, dentre outras. Por outra, sempre que precisei preencher uma ficha, seja no comercio ou banco, quando perguntado sobre qual minha profissão, me vinha a duvida no que responder! E por quê? Simplesmente por que minha profissão não é reconhecida legalmente.
Acho que todos têm o direito de não querer ser profissionais, desde que não privem aqueles que precisam deste direito. Como falei anteriormente, capoeira é minha profissão. Vivo minha vida inteira da capoeira. Só quero ser reconhecido como profissional. Quem não quiser, não seja. Não tenho a ilusão de que a regulamentação da profissão trará dinheiro aos capoeiristas ou aposentadoria como muitos pensam. Também tenho plena consciência da importância de políticas públicas e programas sérios para efetivar melhores condições de trabalho aos capoeiristas. Mas estou convicto de que a criação por lei da profissão de capoeirista dará dignidade para muitos que vivem exclusivamente desta arte.
A forma como a regulamentação da atividade de capoeira será feita, só depende do coletivo da capoeira. Assim como depende do coletivo, discutir quais as políticas públicas que queremos e de que modo vamos conduzir este processo. O que me faz seguir firme e forte na luta é a certeza de que, a grande maioria dos companheiros de luta, despertaram para a necessidade do reconhecimento e valorização daqueles que detém o conhecimento da capoeira. A capoeira foi retirada do código penal brasileira em 1940; a roda da capoeira e os saberes dos mestres foram tombados como patrimônio cultural brasileiro em 2008; e ainda a mesma roda de capoeira foi considerada pela UNESCO em 2014, como patrimônio cultural da humanidade. No entanto, nós, que contemos e perpetuamos este conhecimento e somos responsáveis pela perpetuação deste patrimônio, continuamos na invisilibilidade, relegados á políticas paliativas e assistencialistas.

Somos nós, mestres e professores de capoeira, responsáveis pela manutenção e salvaguarda deste patrimônio. Reconhecer-nos enquanto profissionais é o mínimo que o governo e o estado brasileiro têm de fazer. É fundamental que esta questão seja tratada com toda a seriedade e responsabilidade, por todos aqueles que vivem ou não da capoeira, pois nossas ações de hoje, garantirão o destino da arte que tanto amamos. Este é o meu testemunho.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Luta política em prol dos trabalhadores da capoeira: jogo legítimo!




As lideranças da capoeira no estado de Santa Catarina estão conclamando a comunidade capoeirística de todo o estado a participar nas discussões que vem ocorrendo a nível nacional sobre o futuro da capoeira e dos trabalhadores da capoeira no Brasil.
Para tal, estarão acontecendo encontros regulares em todas as regiões do estado até o mês de maio, quando ocorrerá o II Congresso Catarinense de Capoeira, em Florianópolis.
Para que Santa Catarina tome uma posição concisa e embasada, é necessário o incessante debate entre os pares e é fundamental a participação dos mais variados segmentos da capoeira neste processo.
Não fique de fora, venha debater conosco o futuro do profissional de capoeira em nosso país. 



ESCLARECIMENTOS GERAIS À COMUNIDADE DA CAPOEIRA DE SC, SOBRE A REALIZAÇÃO DOS CONGRESSOS ESTADUAL E NACIONAL DE CAPOEIRA EM 2015.



O III Congresso Nacional Unitário de Capoeira
Está ocorrendo a nível nacional uma mobilização para a realização do III Congresso Nacional Unitário de Capoeira, que ocorrerá nos dias 11, 12 e 13 de junho de 2015, na cidade do Rio de Janeiro - RJ. A pauta do congresso é o debate e deliberações sobre o Projeto de Lei 031/09, que dispõe sobre a regulamentação da atividade de capoeira, bem como a formatação do Plano Nacional de Capoeira. Existe uma equipe na coordenação nacional do congresso, que vem trabalhando para a elaboração de “teses” a respeito do Projeto de Lei e do Plano Nacional de Capoeira, a fim de atender as expectativas do coletivo da capoeira a nível nacional. Estas “teses” serão concluídas em reunião em Brasília, dia 8 de março, e apresentadas à comunidades da capoeira a partir desta data, através de uma revista específica a ser publicada.

O II Congresso Catarinense de Capoeira

Para tal, serão realizados congressos estaduais antes da data do congresso nacional, onde serão fortemente debatidas as “teses” apresentadas pela coordenação nacional e serão tiradas posições a respeito, nos 26 estados da Federação.
Em Santa Catarina, o Congresso está marcado para ocorrer no dia 9 de maio de 2015, em Florianópolis. Além de tomar uma posição sobre a tese apresentada (e se for o caso, apresentar contra proposta), nos congressos estaduais serão eleitos os delegados a participar efetivamente no Congresso Nacional (pessoas com poder de voto), bem como dois representantes entre estes, para fazer uso da palavra na plenária final do congresso nacional.
Por fim, será no III Congresso Nacional Unitário de Capoeira, que serão deliberadas as posições do coletivo da capoeira com relação à pauta discutida.


O ACUMULO DOS MOVIMENTOS ORGANIZADOS DA CAPOEIRA EM PROL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Santa Catarina se destaca como um estado de vanguarda no processo de organização do coletivo da capoeira. Desde o I Congresso Catarinense de Capoeira, em 2003, foram adquiridas inúmeras conquistas pelo coletivo. Foi o acúmulo adquirido nestes movimentos, a nível estadual e também nacional (com o I e II Congresso Nacional de Capoeira), que resultaram em ações por parte do governo, tais como:


  • Cultura Viva – Capoeira Viva (2005);
  • Prêmio Capoeira Viva (2006 e 2007);
  • Registro como Patrimônio Imaterial do Brasil (2008);
  • Encontro de mestres da Fundação Cultural Palmares (2009);
  • Encontros Pró-Capoeira (2010);
  • O reconhecimento e proteção à prática e ensino da capoeira constados no Estatuto da Igualdade Racial (2010);
  • Prêmio Viva Meu Mestre (2011);
  • Reconhecimento da UNESCO – Registro da Capoeira Como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (2014).

Estas ações e reconhecimentos acarretam também em uma maior visibilidade por parte da sociedade, da importância desta atividade em variados aspectos.
Porém é preciso avançar mais e garantir direitos e proteção aos sujeitos da capoeira, seus detentores, ou seja, aqueles que transmitem esta arte.




PORQUE É IMPORTANTE PARTICIPAR DO DEBATE?


O debate, além de propor políticas públicas para a capoeira e os trabalhadores da capoeira, está discutindo sobre profissionalização, regulamentação e reconhecimento da atividade de capoeirista. Por esta razão, deve-se ficar atento a responder questões como:

  • O que buscamos com a regulamentação da profissão?
  • É isso mesmo que queremos?
  • Qual regulamentação queremos?
  • Somos a favor ou contra a regulamentação e por quê?
  • Em que implica, legalmente, a regulamentação de uma profissão?
  • Existirá um órgão regulador da atividade ou as instituições terão sua própria autonomia?





NÃO FIQUE DE FORA, PARTICIPE!

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Roda de Capoeira: Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade


Mais um reconhecimento importante da arte capoeira, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. 
Mais do que nunca agora é importante a união dos capoeiristas de todo Brasil e de todo o mundo, para que este reconhecimento se estenda aos mestres e demais propagadores deste saber ancestral. A união faz a força!!!


Evento "Capoeira sem Fronteiras" 2014 - Mestre Junior - Escola Aú Capoeira Nova Zelândia

Assista ao vídeo no link:

https://www.youtube.com/watch?v=bb4q3KCcxGU

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Iê Viva Pastinha

Há exatos 33 anos, em 13 de novembro de 1981, o mundo perdia um dos maiores ícones da capoeira angola: o saudoso mestre Pastinha – Vicente Ferreira Pastinha (1889- 1981). Mestre Pastinha deu uma contribuição sem igual à prática da capoeira, fazendo nascer uma vertente autêntica, de identidade muito própria, que ganhou o mundo e se fortalece cada vez mais - hoje denominada “escola pastiniana”.

Entre as décadas de 1940 e 1970, em um contexto marcado pela dualidade (enquanto mestre Bimba – Manuel dos Reis Machado, 1899 – 1974, igualmente com sua grandeza de espírito, trabalhava em prol da capoeira por ele reinventada, - a luta regional baiana), mestre Pastinha fazia história divulgando a capoeira angola pelo Brasil e pelo mundo. A história da capoeira não seria a mesma sem a contribuição destes dois importantes mestres!
Mas a existência do Centro Esportivo de Capoeira Angola - CECA, que vigorou por quatro décadas sob coordenação de Pastinha, se deve também à contribuição de outros mestres pouco lembrados pela história da capoeira, mas de igual importância para a configuração desta arte na atualidade. Ao que contam as fontes até hoje estudadas, a criação do CECA foi uma articulação de mestres da antiga velha guarda da capoeira baiana, dentre eles, destaco mestre Aberrê, mestre Noronha, mestre Maré, mestre Amorzinho e Samuel Querido de Deus. Estes “bambas”, na ocasião da famosa roda da Gengibirra, em Salvador, “entregaram” a direção do centro para mestre Pastinha. Pastinha afirma que estava afastado da capoeira há 30 anos e de início relutou em aceitar o convite. Mas por fim terminou aceitando o desafio e foi glorioso em sua missão!
Mestre Pastinha, assim como mestre Bimba com a regional, imprimiu sua identidade à capoeira angola do CECA. Criou seqüências de treinamento, uniformizou seus alunos, valorizou a ludicidade, a brincadeira, a camaradagem, fazendo nascer um estilo de vivenciar a capoeira muito mais enquanto uma brincadeira, do que uma luta. Estilo que contagiou gerações! Mas o mestre alertava para a capoeira luta, como uma defesa e como afirma seu discípulo, mestre Curió:

 Ele [Pastinha] não era violento, e ele combatia muito a violência. Ele dizia que capoeira não era violência, a capoeira era arte, dança, mandinga, malícia, filosofia, educação, cultura, e na hora da dor é que ela passava a ser uma luta perigosíssima.

Iê viva Pastinha! Ao mestre minha eterna gratidão!


Serena Capoeira 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Corpo angoleiro e mente transdisciplinar: uma trajetória marcada por diversidades e adversidades

Por Serena Capoeira*

A Escola Transdisciplinar Aú Capoeira é, sem sombra de dúvidas, uma instituição que surge como um marco na história das relações existentes no mundo da capoeira. Isso, por ela propor, a partir da iniciativa e protagonismo de seu criador, mestre Pop, a reflexão profunda sobre os paradigmas e paradoxos tão presentes neste universo. Mestre Pop vem disseminando, em diversos ambientes, sementes da transdisciplinaridade, que a grosso modo, deve ser entendida como uma “atitude de aceitação do outro e seu conhecimento”. Não há um método a ser seguido, mas sim uma compreensão da realidade existente, e com isso uma atitude de respeito, de empatia e aceitação do diferente.
O universo da capoeira é marcado fortemente por estes paradigmas e conseqüentes paradoxos, que o dividem em “ilhas de saberes”, como diria mestre Pop. Minha trajetória na capoeira é marcada fortemente por esta realidade. Quando iniciei neste universo, no fim da década de 1990, minha realidade era a capoeira angola “tradicional”, da vertente de mestre Pastinha, em especial o trabalho realizado pelo contramestre Lagartixa, do Grupo de Capoeira Angola Mãe, realizado na Lagoa do Peri, ao sul da ilha de Santa Catarina. Ali, no convívio com capoeiristas daquele universo, forjei minhas verdades e minhas concepções sobre o que é a capoeira e seus fundamentos. Um universo encantador, mágico e envolvente, onde a capoeira é vadiada, brincada, jogada e o respeito à integridade física do outro, deve prevalecer acima de tudo. A figura de mestre Pastinha é respeitada e reverenciada, como o grande detentor do saber da capoeira angola. E não poderia ser diferente...
Foi preciso, porém, eu sair daquele universo e ingressar em outro, para começar a fazer uma reflexão sobre o quanto as “verdades” da capoeira nos separam, enquanto capoeiristas e enquanto seres humanos. Foi olhando “de fora”, que pude perceber como aquele universo, do qual me identificava e admirava tanto, em via de regra era, no fundo, repleto de preconceitos e adversidades com outras formas de conceber a capoeira. Por razões que não são relevantes neste artigo, terminei me afastando do Grupo Angola Mãe e ingressei no Grupo de Capoeira Angola Palmares. Foi ali, em 2001, com contra mestre (hoje mestre) Adão, que dei continuidade à capoeira angola, por cerca de mais quatro anos. Capoeira angola! E foi neste contexto, que pela primeira vez, vivi na pela a “dicotomia da capoeira”. Por diversas vezes, ouvi a frase, proferida por parte de meus “antigos” colegas de capoeira: “na Palmares não é angola”! E eu retrucava: “é angola”! E vinha a tréplica: “não é angola”! Bem, à época, não me aprofundei ideologicamente na questão, para saber se é angola ou não, mas o diagnóstico que pude constatar, é que para os praticantes da dita “angola tradicional”, somente eles, seguidores de mestre Pastinha, poderiam dizer-se angoleiros.
Segui com meus aprendizados em capoeira “angola”, com mestre Adão, do Grupo Palmares, por cerca de quatro anos - até 2005. Ali, redescobri a capoeira, para além de Pastinha. A capoeira negra, a herança do negro africano escravizado no Brasil. Conheci o Maculelê, a Puxada de Rede e o Samba de Roda. Entendi a força da capoeira angola e a sua origem. A África passou a pulsar em minhas veias. Neste contexto, por falta de tempo, me afastei fisicamente da capoeira, e fiquei por quase dois anos parada, treinando eventualmente em um ou outro local. E foi em 2007, que retornei aos treinos sistemáticos, novamente na angola de Pastinha, desta vez com dois alunos de contramestre Lagartixa – Jeoh e Osmar. Eu já estava com tanta sede de treinar capoeira, que mergulhei fundo nos ensinamentos daquela vertente de capoeira da qual, no fundo, sempre meu coração bateu mais forte (apesar de sua ideologia segregadora).
E foi nestas idas e vindas de minha trajetória, por fim me encontrei ideologicamente, quando conheci pessoalmente mestre Pop, da Escola Aú Capoeira e seu olhar para a capoeira. Conversávamos bastante, e ele, com suas provocações, me fez questionar minhas próprias verdades. Me fez, através de nossas conversas, passar a ver a capoeira com outros olhos, entendendo que nela há muitas verdades. Passaram-se meses, e foi em 2008, que decidi, por uma questão ideológica, entrar para a Escola Aú Capoeira. A reflexão sobre a capoeira foi tão forte, que até escrevi meu trabalho de conclusão de curso de graduação em história – UFSC-, justamente sobre o “discurso” angoleiro, tão presente em minha trajetória.
Nestes seis anos de Escola Aú Capoeira, através de muito estudo e reflexão, pude perceber que não são só os “angoleiros” que têm discursos sectários. Esta é uma realidade bastante presente nas diversas vertentes de capoeira.  Existe uma forte cultura em diminuir e desqualificar o “outro”, o “diferente”, para impor uma auto-qualificação. Esta desqualificação do outro se dá tanto a nível físico, na hora do jogo, quanto no aspecto ideológico. E mais, vai além do universo da capoeira, estando presente no íntimo do ser humano.
Mas como seria possível superar estas dicotomias? E para que, e porque se faz necessário superá-las? Mestre Pop ousou apoderar-se de um “conceito” acadêmico para aplicá-lo à uma realidade da cultura popular. Trouxe algo teórico, para a prática. Isso porque a transdisciplinaridade não é um método, mas sim uma atitude e uma forma de compreensão do mundo presente. É um “conceito’ das ciências da educação, que visa unir as disciplinar, pela compreensão do que está “entre”, “através” e “além” de cada disciplina. Desta forma, os saberes que se configuravam ilhados, separados, passam a dialogar entre si permanentemente e mais que isso, compreender que sua existência depende da existência dos outros. Neste sentido acredito que somente através de uma mente transdisciplinar e de uma atitude transdisciplinar, poderemos superar estas mazelas, em prol da verdadeira união desta arte tão completa e tão rica. Este entendimento devemos a nomes como Edgard Morim, Basarab Nicolesco e tantos outros, que através da transdisciplinaridade buscam um mundo mais harmonioso e menos preconceituoso, mais fraterno e menos egocêntrico.
Desta forma, em uma escola de capoeira transdisciplinar, o que importa é o olhar para o mundo, para o outro e para si mesmo. A capoeira deve ser um meio e não o fim. Na Escola Transdisciplinar Aú Capoeira podemos ser angoleiros, regionalistas, contemporâneos, só não podemos ser fechados em nós mesmos. Eu escolhi ser angoleira e outros colegas da escola escolheram outras vertentes. Há capoeiristas da chamada contemporânea e da angola do meio, unidos em uma única escola e modo de ver o mundo da capoeira, que é a transdisciplinaridade. Eu escolhi ser angoleira, por me identificar com a forma de conceber os fundamentos da capoeira através de mestre Pastinha, onde a rivalidade, a perversidade, a dita “maldade” do jogo, devem ser substituídas pela harmonização, pela brincadeira e ludicidade do jogo, onde as formas de “marcar ponto” são muito particulares (como bem expressou meu amigo professor Drauzio Branco). Mestre Pastinha nos ensinou a respeitar o companheiro de jogo acima de tudo, pois ele não é nosso inimigo. Ensinou que a capoeira não deve ser violenta, mas sim perigosa.  É isso que considero como critério para ser angoleira. Não preciso desmerecer a capoeira contemporânea, nem a capoeira regional e muito menos a “angola do meio” ou qualquer outra, para ser angoleira. Por isso sou angoleira sim, mas com uma mente e atitudes transdisciplinares.
A transdisciplinaridade, portanto é a razão de nossa escola. Neste sentido, para finalizar, trago aqui uma noção dos povos de língua bantu, da África sub-saariana, como reflexão. Trata-se do termo “ubuntu”, que é uma noção que exprime a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade.  Ubuntu pode ser traduzida como “eu sou, porque nós somos”, ou “a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humanidade”.

Reflita e ajude-nos a construir uma sociedade menos individualista e narcisista!

* Paola Vicenzi Franco

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

PALESTRAS COM MESTRE POP

Assista as palestras de mestre Pop, e repense seus conceitos sobre a capoeira e os paradigmas construídos pelo determinismo e pragmatismo históricos!