Por Serena Capoeira*
A
Escola Transdisciplinar Aú Capoeira é, sem sombra de dúvidas, uma instituição
que surge como um marco na história das relações existentes no mundo da
capoeira. Isso, por ela propor, a partir da iniciativa e protagonismo de seu
criador, mestre Pop, a reflexão profunda sobre os paradigmas e paradoxos tão
presentes neste universo. Mestre Pop vem disseminando, em diversos ambientes,
sementes da transdisciplinaridade, que a grosso modo, deve ser entendida como
uma “atitude de aceitação do outro e seu conhecimento”. Não há um método a ser
seguido, mas sim uma compreensão da realidade existente, e com isso uma atitude
de respeito, de empatia e aceitação do diferente.
O
universo da capoeira é marcado fortemente por estes paradigmas e conseqüentes
paradoxos, que o dividem em “ilhas de saberes”, como diria mestre Pop. Minha
trajetória na capoeira é marcada fortemente por esta realidade. Quando iniciei
neste universo, no fim da década de 1990, minha realidade era a capoeira angola
“tradicional”, da vertente de mestre Pastinha, em especial o trabalho realizado
pelo contramestre Lagartixa, do Grupo de Capoeira Angola Mãe, realizado na
Lagoa do Peri, ao sul da ilha de Santa Catarina. Ali, no convívio com
capoeiristas daquele universo, forjei minhas verdades e minhas concepções sobre
o que é a capoeira e seus fundamentos. Um universo encantador, mágico e
envolvente, onde a capoeira é vadiada, brincada, jogada e o respeito à
integridade física do outro, deve prevalecer acima de tudo. A figura de mestre
Pastinha é respeitada e reverenciada, como o grande detentor do saber da
capoeira angola. E não poderia ser diferente...
Foi
preciso, porém, eu sair daquele universo e ingressar em outro, para começar a
fazer uma reflexão sobre o quanto as “verdades” da capoeira nos separam,
enquanto capoeiristas e enquanto seres humanos. Foi olhando “de fora”, que pude
perceber como aquele universo, do qual me identificava e admirava tanto, em via
de regra era, no fundo, repleto de preconceitos e adversidades com outras
formas de conceber a capoeira. Por razões que não são relevantes neste artigo,
terminei me afastando do Grupo Angola Mãe e ingressei no Grupo de Capoeira
Angola Palmares. Foi ali, em 2001, com contra mestre (hoje mestre) Adão, que
dei continuidade à capoeira angola, por cerca de mais quatro anos. Capoeira
angola! E foi neste contexto, que pela primeira vez, vivi na pela a “dicotomia
da capoeira”. Por diversas vezes, ouvi a frase, proferida por parte de meus “antigos”
colegas de capoeira: “na Palmares não é
angola”! E eu retrucava: “é angola”!
E vinha a tréplica: “não é angola”!
Bem, à época, não me aprofundei ideologicamente na questão, para saber se é angola ou não, mas o diagnóstico que
pude constatar, é que para os praticantes da dita “angola tradicional”, somente
eles, seguidores de mestre Pastinha, poderiam dizer-se angoleiros.
Segui
com meus aprendizados em capoeira “angola”, com mestre Adão, do Grupo Palmares,
por cerca de quatro anos - até 2005. Ali, redescobri a capoeira, para além de
Pastinha. A capoeira negra, a herança do negro africano escravizado no Brasil. Conheci
o Maculelê, a Puxada de Rede e o Samba de Roda. Entendi a força da capoeira
angola e a sua origem. A África passou a pulsar em minhas veias. Neste
contexto, por falta de tempo, me afastei fisicamente da capoeira, e fiquei por
quase dois anos parada, treinando eventualmente em um ou outro local. E foi em
2007, que retornei aos treinos sistemáticos, novamente na angola de Pastinha,
desta vez com dois alunos de contramestre Lagartixa – Jeoh e Osmar. Eu já
estava com tanta sede de treinar capoeira, que mergulhei fundo nos ensinamentos
daquela vertente de capoeira da qual, no fundo, sempre meu coração bateu mais forte
(apesar de sua ideologia segregadora).
E
foi nestas idas e vindas de minha trajetória, por fim me encontrei
ideologicamente, quando conheci pessoalmente mestre Pop, da Escola Aú Capoeira
e seu olhar para a capoeira. Conversávamos bastante, e ele, com suas provocações,
me fez questionar minhas próprias verdades. Me fez, através de nossas
conversas, passar a ver a capoeira com outros olhos, entendendo que nela há
muitas verdades. Passaram-se meses, e foi em 2008, que decidi, por uma questão
ideológica, entrar para a Escola Aú Capoeira. A reflexão sobre a capoeira foi
tão forte, que até escrevi meu trabalho de conclusão de curso de graduação em
história – UFSC-, justamente sobre o “discurso” angoleiro, tão presente em minha
trajetória.
Nestes
seis anos de Escola Aú Capoeira, através de muito estudo e reflexão, pude
perceber que não são só os “angoleiros” que têm discursos sectários. Esta é uma
realidade bastante presente nas diversas vertentes de capoeira. Existe uma forte cultura em diminuir e
desqualificar o “outro”, o “diferente”, para impor uma auto-qualificação. Esta desqualificação
do outro se dá tanto a nível físico, na hora do jogo, quanto no aspecto
ideológico. E mais, vai além do universo da capoeira, estando presente no
íntimo do ser humano.
Mas
como seria possível superar estas dicotomias? E para que, e porque se faz
necessário superá-las? Mestre Pop ousou apoderar-se de um “conceito” acadêmico para
aplicá-lo à uma realidade da cultura popular. Trouxe algo teórico, para a
prática. Isso porque a transdisciplinaridade não é um método, mas sim uma
atitude e uma forma de compreensão do mundo presente. É um “conceito’ das ciências
da educação, que visa unir as disciplinar, pela compreensão do que está “entre”,
“através” e “além” de cada disciplina. Desta forma, os saberes que se
configuravam ilhados, separados, passam a dialogar entre si permanentemente e
mais que isso, compreender que sua existência depende da existência dos outros.
Neste sentido acredito que somente através de uma mente transdisciplinar e de
uma atitude transdisciplinar, poderemos superar estas mazelas, em prol da verdadeira
união desta arte tão completa e tão rica. Este entendimento devemos a nomes
como Edgard Morim, Basarab Nicolesco e tantos outros, que através da
transdisciplinaridade buscam um mundo mais harmonioso e menos preconceituoso,
mais fraterno e menos egocêntrico.
Desta
forma, em uma escola de capoeira transdisciplinar, o que importa é o olhar para
o mundo, para o outro e para si mesmo. A capoeira deve ser um meio e não o fim.
Na Escola Transdisciplinar Aú Capoeira podemos ser angoleiros, regionalistas,
contemporâneos, só não podemos ser fechados em nós mesmos. Eu escolhi ser
angoleira e outros colegas da escola escolheram outras vertentes. Há capoeiristas
da chamada contemporânea e da angola do meio, unidos em uma única escola e modo
de ver o mundo da capoeira, que é a transdisciplinaridade. Eu escolhi ser
angoleira, por me identificar com a forma de conceber os fundamentos da
capoeira através de mestre Pastinha, onde a rivalidade, a perversidade, a dita “maldade”
do jogo, devem ser substituídas pela harmonização, pela brincadeira e
ludicidade do jogo, onde as formas de “marcar ponto” são muito particulares
(como bem expressou meu amigo professor Drauzio Branco). Mestre Pastinha nos
ensinou a respeitar o companheiro de jogo acima de tudo, pois ele não é nosso
inimigo. Ensinou que a capoeira não deve ser violenta, mas sim perigosa. É isso que considero como critério para ser
angoleira. Não preciso desmerecer a capoeira contemporânea, nem a capoeira regional
e muito menos a “angola do meio” ou qualquer outra, para ser angoleira. Por
isso sou angoleira sim, mas com uma mente e atitudes transdisciplinares.
A
transdisciplinaridade, portanto é a razão de nossa escola. Neste sentido, para
finalizar, trago aqui uma noção dos povos de língua bantu, da África
sub-saariana, como reflexão. Trata-se do termo “ubuntu”, que é uma noção que exprime
a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade. Ubuntu pode ser traduzida como “eu sou, porque
nós somos”, ou “a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua
humanidade”.
Reflita
e ajude-nos a construir uma sociedade menos individualista e narcisista!
* Paola Vicenzi Franco