A CAPOEIRA E SUAS
VERTENTES
Por Serena Capoeira
(Paola Vicenzi Franco)
Compreender
o universo da capoeira a partir do conceito da transdisciplinaridade é contemplar
a diversidade de formas e maneiras de praticar e conceber esta arte e mais que isso
compreende-la como uma cultura viva, que coexiste com demais culturas e assim
sendo, influencia e sofre influencia dos mais diversos contextos políticos e
sociais nos quais está inserida. Para isso, se faz necessário o estudo da
história da capoeira, a partir dos mais diversos pontos de vista, sem
prevalecer um único enfoque. Estudar os personagens, os contextos e conjunturas
históricas que levaram à capoeira ao que ela é hoje: um vasto universo
representado por diferentes identidades, a que chamamos na Escola Transdisciplinar
Aú Capoeira, de vertentes. A atitude transdisciplinar, é a aceitação do
diferente pela compreensão de sua importância na configuração do “todo”. Neste
sentido, todas vertentes existentes são de igual importância para a capoeira na
forma como ela se configura atualmente.
Este
capítulo consiste em um suporte didático que serve de base aos estudos teóricos
da capoeira, no que diz respeito à sua história. Busca focar uma visão global de
como cada vertente se moldou ao longo do tempo, enfocando os principais
personagens que influenciaram cada época em cada vertente.
Embora
seja de suma importância que o estudo a respeito da prática da capoeira no
período colonial e imperial, optamos em focar o período pós regulamentação da
capoeira (a partir da década de 1930) quando começa sua diáspora pelo Brasil e
posteriormente pelo mundo, no sentido justamente da compreensão da diversidade
de práticas de capoeira instituídas na atualidade. Sobre os períodos
anteriores, será apresentado um breve resumo.
É
importante salientar, que este capítulo retrata um panorama geral da capoeira e
suas vertentes, porém para se obter uma compreensão mais aprofundada da
trajetória de cada mestre e cada vertente de capoeira, é importante um maior
aprofundamento e especialização. Como citado anteriormente, o trabalho consiste
em um suporte didático para estudos posteriores.
A CAPOEIRA NASCEU NO BRASIL, MAS SUA
SEMENTE FOI TRAZIDA DA ÁFRICA
Em
meados dos séculos XV e XVI, os europeus, principalmente espanhóis, portugueses
e ingleses, protagonizaram um dos maiores acontecimentos da história da
humanidade: a invasão, conquista e colonização da América. Foi dentro deste
contexto, que se deu também, outro acontecimento que foi o maior holocausto já
ocorrido na história, que foi a escravização do povo africano para trabalhar
nas Américas. Estima-se que cerca de quatro milhões de negros chegaram ao
Brasil entre os séculos XVII e XIX, mais precisamente até 1851, quando o
tráfico negreiro foi abolido oficialmente no país.
Os
negros africanos traficados e escravizados eram levados para toda a América, em
sua maioria para o Brasil, Estados Unidos e Caribe. Em todas as regiões para
onde foram levados, deixaram sua cultura, seus costumes e hábitos. A razão do
povo africano ter sido alvo da escravidão, em muito se atribui à
auto-habilidades que tinham, fundamentais para o desenvolvimento das colônias.
As técnicas de mineração, criação de gado, agricultura, construção e muitas
outras, foram trazidas pelos africanos. Isso se deve à natureza civilizatória
do povo africano, berço da humanidade. Apesar das péssimas condições em que os
negros se encontravam quando escravos, sem poder praticar sua religião e seus
costumes, ainda assim, a cultura negra sobreviveu, se adaptou e é uma das mais
marcantes no Brasil: influencias na arte, na música, na culinária, na língua e
na religião são extremamente fortes em nosso país.
Com
a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel em 1888, os negros tornaram-se oficialmente
livres. Porém, como é de conhecimento de muitos, isto não aconteceu na prática
e este povo ainda permaneceu escravizado através da falta de empregos, de
oportunidades, de moradia e de mínimas condições de sobrevivência.
A
capoeira é parte integrante deste contexto. Ela é uma invenção negra e escrava
no Brasil, já que nem na África e nem nos demais países americanos que houve
escravidão negra existe capoeira. Mesmo que os negros tenham a trazido da
África (como defendem alguns estudiosos), por alguma razão é no Brasil que ela
se desenvolve e se fortalece e do Brasil se espalha por todo mundo.
A capoeira antiga
Em
seus primórdios, a capoeira era praticada principalmente por africanos e por
negros descendentes de africanos, escravos ou libertos. Devido os negros serem
proibidos de praticar sua cultura, a prática da capoeira foi perseguida por
longos anos na história, nos períodos colonial e imperial. E foi a partir de
1889, um ano após a abolição da escravidão, com a Proclamação da República no
Brasil, que a perseguição à capoeira passou a ser ainda pior e a mesma foi
declarada oficialmente um crime, constando no código penal brasileiro. As
punições para seus praticantes variavam entre agressões físicas (açoite) e
mesmo prisões, que podiam durar até dois anos.
Mesmo após a abolição ainda havia (como ainda
há) muito preconceito contra o povo negro, devido seu histórico como escravo e
em especial devido às concepções evolucionistas que vigoravam na Europa e
influenciavam as elites no Brasil, onde o negro e o índio eram vistos como
inferiores aos europeus. Por esta razão, os negros e conseqüentemente os
capoeiristas, eram vistos como vadios, delinqüentes e desordeiros. E essa visão
durou por longos anos, sendo bastante forte entre o final do século XIX e
início do século XX.
O
início da prática da capoeira é incerto e as datas muitas vezes controvérsias.
Para alguns a capoeira nasceu nas senzalas das plantações de cana-de-açúcar e
café. Outros sugerem que a luta teve sua gênese nos quilombos, símbolos de
liberdade e resgate das tradições africanas. Há também, aqueles que defendem
que a capoeira configura um fenômeno essencialmente urbano surgido em três
grandes cidades, Rio de janeiro, Salvador e Recife.
A
referência mais antiga da capoeira como forma de luta data de 1770, feita pelo
cronista Hermeto Lima: (...) Como não
dispunham de armas para sua defesa uma vez atacados por numeroso grupo
defendiam-se por meio da “capoeiragem”, não raro deixando estendidos por uma
cabeçada ou uma rasteira, dois ou três de seus perseguidores. Aparecem
também citações de 1789 e começam a ser mais freqüentes as
fontes sobre a capoeira a partir do século XIX, principalmente na cidade do Rio
de Janeiro. Desde este período até meados do século XX, as referencias à
capoeira são de “luta”, “jogo”, “vadiagem” ou somente “capoeira” e
“capoeiragem”. É somente no século XX, a partir da capoeiragem baiana, que ela
irá se dividir em vertentes, que tem início com a famosa dicotomia entre
“angola” e “regional”.
Esta
dicotomia nasceu nas décadas de 1930 e
1940, com a ascensão dos mestres Bimba
e Pastinha no cenário baiano e nacional. Atualmente esta divisão vai
além da dualidade angola X regional. A
regional se expande pelo mundo através da chamada capoeira contemporânea, que
se fragmenta em inúmeros grupos que em geral disputam espaço e status entre si;
paralelamente, há os seguidores diretos de mestre Bimba, que defendem a
regional tradicionalmente como era praticada pelo mestre. A capoeira angola
pastiniana cada vez mais, busca firmar sua identidade “angoleira”, contrária à
“modernização” instituída pela regional e posteriormente pela contemporânea e
mais que isso, nega a importância destas e outras vertentes na história da
capoeira; ainda há a chamada “angola do meio”, capoeira autêntica de Salvador e
cidade de Santo Amaro da Purificação, no estado da Bahia, que reúne como
detentores os capoeiristas da velha guarda da capoeira baiana e seus discípulos,
que se intitulam de angoleiros, por se contraporem às práticas e métodos da
capoeira contemporânea e regional, mas que não fazem parte da escola de mestre
Pastinha.
Grosso
modo, mestre Pop identifica, portanto, a existência de quatro principais vertentes:
capoeira angola do meio, capoeira angola pastiniana, capoeira regional e
capoeira contemporânea.
SÉCULO
XX – O NASCIMENTO DAS VERTENTES / IDENTIDADES
A capoeira da Bahia na primeira metade
do século XX é sem dúvida a base de estudo mais importante para a compreensão
da formação da diversidade cultural da capoeira da atualidade. Foi entre os
anos de 1930 e 1950 que a capoeira ganha visibilidade e prestígio, a partir do
trabalho dos mestres Bimba – Manuel dos Reis Machado-, e Pastinha – Vicente
Ferreira Pastinha. Mas para a configuração deste cenário, também foram elementares
outros nomes, que são pouco lembrados como importantes para o processo de
aceitação da capoeira perante a sociedade: mestre Aberrê – Antônio Raimundo, mestre
Noronha - Daniel Coutinho, mestre Samuel Querido de Deus, mestre Maré – Antonio
Laurindo Neves, dentre outros, foram fundamentais para a ascensão da capoeira
angola, posteriormente fortificada por mestre Pastinha.
Outra figura imprescindível para os
novos rumos da capoeira naquele contexto foi o então presidente do Brasil, Getúlio
Vargas. No novo código penal, vigente a partir de 1940, a capoeira não mais
fazia parte, porém, ao mesmo tempo passou a ser obrigatória a sua realização em
recinto fechado, fora das ruas, com um alvará de instalação, sendo esta uma
maneira de exercer o controle de tais manifestações. Desta forma, os
capoeiristas que ganharam destaque no período, foram os que realizaram
trabalhos nestes moldes, no caso os mestres Bimba e Pastinha.
Mestre Bimba e a
capoeira regional
Foi com Manuel dos Reis Machado, o
mestre Bimba, que começou o processo que levou a capoeira a se tornar o que é
hoje. Primeiro disciplinador e pedagogo desta arte, desenvolveu o que chamou de
“luta regional baiana”, ou capoeira regional. Com seu Centro de Cultura Física
e Capoeira Regional, mestre Bimba iria mudar a história desta luta, quando em
09 de julho de 1937, conseguiu o registro necessário para a abertura oficial da
1ª academia de capoeira do mundo. O mestre teve o cuidado de eliminar a palavra
capoeira do nome da escola para evitar qualquer associação com a origem
marginal da luta, já que o centro foi aberto em 1932, quando a capoeira vigorava
no código penal.
Bimba aprendeu capoeira como a maioria
dos meninos da época. Filho de índia tupinambá com um negro de origem banto, lutador
de batuque, luta de origem africana muito praticada na Bahia no início do
século XX. Nascido no ano de 1899,
ainda criança aprendeu capoeira com um negro chamado Bentinho, um filho de
africanos, capitão da Companhia de Navegação da Bahia.
Em 1918, Bimba iniciou o ensino de
capoeira no “Clube União em Apuros”, situado no Engenho Velho de Brotas –
Salvador/ Bahia. Naquele tempo não havia escolas da luta na Bahia e segundo o
próprio mestre havia roda de capoeira nas
esquinas, nas portas dos armazéns, no meio do mato. A polícia proibia e eu, uma
certa ocasião, paguei até 100 contos a ela para tocar duas horas. Aos
poucos aproximaram-se da academia de mestre Bimba diversos universitários e
alunos provenientes das classes médias brancas baianas, como Joaquim de Araújo
Lima, através de quem o mestre teria conseguido realizar sua primeira
apresentação pública de capoeira sem interferência da polícia, no ano de 1924.
Em 1928, Bimba já havia finalizado a
criação da nova modalidade de capoeira, a regional, que definiu, em depoimentos
a dois jornais de 1965 e1972, como “(...)
o batuque misturado com a angola, com mais golpes, uma verdadeira luta, boa
para o físico e para a mente”. Considerando que a capoeira constitui-se em
uma “necessidade de defesa dos escravos africanos”, o mestre diz ter criado a
modalidade regional “para o fraco se defender do forte”, porque considerava que
a capoeira de então - chamada hoje capoeira angola-, na qual tinha se
desenvolvido, “deixa muito a desejar”, pois “só mostra danças e acrobacias”.
Muitos estudiosos e mesmo
capoeiristas, atribuem a capoeira regional de mestre Bimba como tendo sido
inspirada no trabalho do carioca Annibal
Burlamarqui, também de 1928, uma
sistematização feita com os golpes e defesas da capoeira. Porém esta
versão é bastante contestada por alguns de seus ex-alunos, que afirmam que
mestre Bimba nunca teria ido ao Rio de Janeiro antes de 1928, e que mesmo se
comparado um método ao outro, há uma série de diferenças entre os dois.
Para ensinar a luta regional baiana,
Bimba desenvolveu uma metodologia até então inexistente no universo da
capoeira. Criou um método pedagógico rigoroso, com lições, apostilas, aulas em
e horários definidos, controle de mensalidades e um rígido código de ética. Até
então os ensinamentos eram transmitidos oralmente.
Ao fim do curso havia um “batizado”
marcando a estréia do aluno iniciante nas rodas. O aluno pela primeira vez
jogava capoeira ao som dos instrumentos, e ganhava um apelido. A graduação era
simbolizada por uma medalha e um lenço de seda (costume antigo de capoeiristas
de Salvador que amarravam o lenço no pescoço para se proteger das navalhas).
Em 1972, desgostoso com a falta de
incentivos do poder público da Bahia, mestre Bimba se mudou para Goiânia, na
promessa de melhores condições de vida para sua família. Porém, o que lhe fora
prometido não ocorreu e Bimba passou dificuldades. Em 1974, morreu vítima de um
derrame, triste e longe de Salvador.
Bimba deixou discípulos, que deram
continuidade a seu trabalho. Mestres como Acordeon, Cafuné, Boinha e Itapuãn
são referências da capoeira regional do período. Porém, o único com um trabalho
significativo, e que deu continuidade à capoeira regional sem se deixar
influenciar pela contemporânea, foi mestre Nenel, filho de mestre Bimba.
Bimba, com a criação da capoeira
regional, intencionalmente ou não, acompanhou as novas concepções culturalistas
que estavam em voga no mundo intelectual. Com a entrada do século XX, começa a
ser gestada na escrita e nas artes a dissociação entre raça e cultura. Assim
irão emergir paradigmas que tem como meta a regeneração e reivindicação da
identidade mestiça do homem latino-americano, no contexto ocidental. A partir
dos anos 20, portanto, a mestiçagem será o suporte das novas interpretações
culturalistas. Estas representações trazem subsídios para a elaboração da
identidade brasileira, pensada através da mestiçagem do povo e da cultura,
tendo Gilberto Freyre como um de seus grandes ícones. Cria-se um mito de origem
onde a nacionalidade e cultura brasileira seriam fruto da fusão harmoniosa dos
nossos três elementos de base: o negro africano, o português branco e o nativo
indígena. Neste sentido, a
capoeira regional é vista como fruto desta mestiçagem.
A
partir de então, abrem-se precedentes a outros estudos sobre o negro nas
Américas, que focam os laços existentes com a África no processo de formação
das culturas afro-americanas. Esta passa a ser pensada em termos de “pureza” ou
“degradação” e neste contexto deve-se pensar a subdivisão da capoeira em angola
e regional. Sob o “olhar” de tais concepções, a capoeira regional, criada por
mestre Bimba, representaria a capoeira mestiça, moderna, e a angola de mestre
Pastinha, representaria a pureza, e o resgate de laços com a origem africana
desta arte e principalmente a negação a quaisquer elementos novos introduzidos
à mesma.
Afirmação de uma
tradição: os mestres da velha guarda baiana e a capoeira angola “do meio”
No mesmo contexto histórico e
geográfico em que mestre Bimba fortificava seu novo método de capoeira – a
regional, nasceria um movimento, que mais tarde fica conhecido como capoeira
angola. As profundas transformações ocorridas na sociedade brasileira após a
revolução de 1930 trouxeram novas perspectivas para todos e os capoeiristas
forjaram neste momento diferentes táticas para legitimar suas práticas
culturais. Este período é um grande marco na história da organização política
da capoeira baiana, assim como de outros setores da sociedade brasileira. Neste
processo, pode-se apontar três diferentes tentativas de organização, busca por
aceitação e ascensão por parte dos capoeiristas baianos: a participação da
capoeira nas lutas de ringue, a União dos Capoeiras da Bahia no contexto do 2°
Congresso Afro-brasileiro da Bahia, e por fim a organização do Centro Esportivo
de Capoeira Angola - CECA.
Em Salvador as lutas de ringue
concentraram-se em um parque na Praça da Sé, local posteriormente conhecido
como Belvedere da Sé. O Parque Odeon promoveu uma série de lutas entre atletas
de boxe, jiu-jitsu, catch-as-catch-can, capoeira regional e capoeira angola. A
rivalidade entre estas duas propostas de capoeira já se manifestava, inclusive
em desafios. Mestre Bimba se consagrou como campeão e como juiz destes
campeonatos. Em 1936, uma manchete de jornal diz: Bimba desafia os capoeiristas baianos.
Havia, porém uma questão em jogo:
quais deveriam ser as regras para a capoeira, no caso das disputas de ringue?
Muitos participantes de outras lutas e mesmo o público que assistia, tinham a
opinião de que a capoeira era “tapeação”, ou “jogo de compadre”, já que estavam
acostumados às violentas lutas de boxe, por exemplo.
Mestre Bimba neste contexto, da
capoeira no ringue, a defendia enquanto esporte e defesa pessoal. Ao mesmo
tempo, os demais capoeiristas tradicionais da Bahia, buscavam estratégias para
preservar fundamentos básicos da capoeiragem antiga. Sobre esta questão, Samuel Querido de Deus
(capoerista bastante conhecido da época), condenava o sistema adotado por
Bimba: não resta dúvida que o Bimba é
forte e ágil, porém é exagero chama-lo de campeão baiano de capoeiragem pois
merecidamente cabe ao Maré este título. A
capoeira por Bimba introduzida no Parque Odeon não é legítima a de Angola,
mesmo porque para se praticá-la se faz a presença do berimbau e pandeiro
marcadores do ritmo.
Desta forma, os representantes de
angola e regional, embora vissem nas competições uma forma de ascensão da
capoeira e de seus praticantes perante a sociedade, tinham opiniões fortemente
divergentes em relação às regras de competição. No período os ditos angoleiros
chegam a criar um sistema de regras e pontuação bastante específico, mas
terminam posteriormente se afastando dos duelos nos ringues. Neste contexto
destacam-se, além de mestre Bimba, capoeiristas como Aberrê, Henrique Bahia,
Samuel Querido de Deus, Zeí e outros. Até o momento não há registros da
presença de mestre Pastinha neste movimento.
No mesmo período (década de 1930)
outra tentativa de organização foi no contexto do 2° Congresso Afro Brasileiro
na Bahia, sob a coordenação de Edson Carneiro. Nas cartas de organização do
congresso, há duas propostas políticas de organização: a dos terreiros de
candomblé e a União dos Capoeiras da Bahia. Pelo perfil dos capoeiristas que
participaram do evento, parece não haver dúvida acerca da composição desta
entidade: seria exclusivamente de angoleiros 9ou não regionalistas). Edson
(1980) afirma que, em apresentação feita especialmente para o congresso, no
Clube de Regatas Itapagipe, participou o melhor
grupo de capoeiras da Bahia chefiado por Samuel Querido de Deus e integrado
pelo capitão Aberrê e por Bugaia, Onça Preta, Barbosa, Zepelim, Juvenal, Polú e
Ricardo, que exibiu todas as variedades da célebre luta dos negros de Angola.
Porém, por diversas razões, tanto as
lutas de ringue, como a organização dos capoeiras da Bahia não se mostraram
eficazes na legitimação da capoeira tradicional, já chamada de capoeira de
angola. Os angoleiros então logo partiram para outra tentativa, que se revelou
fecunda e duradoura: a criação do Centro de Capoeira Angola. E é somente neste
contexto que se insere mestre Pastinha.
O fato é que, segundo depoismentos do
próprio mestre Pastinha, o mesmo ficou afastado da capoeira por cerca de 30 anos, (de 1912 a 1941) e
quando é convidado a estar à frente do CECA (pelos próprios capoeiristas
angoleiros da época), estava com suas atividades paradas, ou seja, não era mais
envolvido com a prática da capoeira. Em suas palavras, eu aprendi [capoeira] na rua da laranjeiro, e lesionei na rua Sta.
Izabel em 1910 a 1912, quando abandonei a capoeira, e voltei, em 1941, para
organizar o Centro de capoeira o 1º na Bahia. Segundo alguns estudiosos, os
antigos mestres do período convidaram Pastinha, pois o mesmo, em um universo de
iletrados, era um dos poucos que sabia escrever bem, tendo condições de ser um
mediador que articulasse a capoeira tradicional com outros setores da
sociedade, a fim de garantir a aceitação e ascensão dessa prática cultural.
Pastinha era considerado por seu alto conhecimento espiritual e filosófico,
caráter de educador e grau de mestria.
E é neste contexto, que tem início a
divisão da própria capoeira angola. Este fato é fundamental para o entendimento
da existência da vertente de capoeira angola “do meio”, nome dado por mestre
Pop.
Mestre Noronha, em seus manuscritos,
relata a primeira tentativa de criar o Centro: primeiro centro de capoeira angola do Estado da Bahia na ladeira de
Pedra bairro da Liberdade fundado por grandes mestre Daniel Coutinho, Noronha,
Livinho, Maré, Amouzinho,
Raimundo Aberrê, Percílio, Geraldo Chapeleiro, Juvenal engraxate,
Geraldo Pé de Abelha, Zehi, Feliciano Bigode de Ceida, Bonome Henrique
Cara Queimada, Anca Preta, Cimento,
Algimiro Grande Olho de Pombo estivador
Antônio Galindeu Antônio Boca de
Porco estivador Lucio Pequeno Paqueite do Cabula.
Segundo Frede Abreu, que organizou e
publicou os manuscritos de mestre Noronha, antes desta tentativa de organização
de um centro no Gengibirra (Centro Nacional de Capoeira de Origem Angola), que
posteriormente passou às mãos de mestre Pastinha, houve a tentativa de
organização do Conjunto de Capoeira de Angola Conceição da Praia, liderado pelo
mestre Noronha. Mestre Bola Sete atribuiu a data de 1922 à fundação do Centro
Conceição da Praia (outra tentativa de criar um centro de capoeira angola).
Estas informações são importantes para
entender a criação do CECA como uma articulação coletiva dos capoeiristas da velha
guarda da Bahia. Neste contexto, em 1941, mestre Pastinha é então chamado para
a organização do centro. Esta história tem versões diferentes, uma contada por
Pastinha e outra por Noronha. Em ambas versões, Pastinha teria ido à roda de
capoeira no Gengibirra a convite e insistência de mestre Aberrê (uma das mais
importantes rodas de capoeira do período, que reunia os principais nomes da
época), e na ocasião teria sido convidado para “mestrar” aquela capoeira. Na
versão de Pastinha, o próprio Amorzinho, assim como Maré, o incumbiram de estar
à frente daquela capoeira, a de angola. Já segundo Noronha, o centro foi
entregue a mestre Pastinha, por ocasião da morte de Amorzinho.
Independente se a entrada de mestre Pastinha
neste contexto foi por Amorzinho ou em função de sua morte, o que importa salientar
é que, a proposta inicial do Centro parece ter sido a de uma escola coletiva,
que reunisse a velha guarda da capoeira angola. E os manuscritos de mestre
Noronha, dão a entender esta perspectiva, frustrada pela ascensão de mestre
Pastinha. Noronha afirma que ele (Pastinha) foi o único de confiança na época,
e que fez ali muitos alunos, porém deixou isolados os demais capoeiristas
antigos. Afirma que: foi registrado por
Vicente Pastinha e fez muito aluno e nos ficamo izolado do centro porque os
grande amigos hero os donos ate a própria mulher hera a dona uma tal de Nice a
origem do nosso afastamento do centro do pilorinho n° 19. Nos donos não tivemos
direito a nada.
A partir daquele momento, nasceria
perante a sociedade, a chamada capoeira angola “tradicional”, representada por
mestre Pastinha. Ao mesmo tempo, os capoeiristas que não seguiram sua linhagem,
também angoleiros (não regionalistas), continuaram a praticar sua capoeira sem
influencia direta de mestre Pastinha. Nomes como Pierrot e Nilton de Santo
Amaro e posteriormente Fernandinho e mestre Nô, seguiram uma capoeira nos
moldes da capoeiragem antiga. Estes porém, posteriormente (já a partir dos anos
70 e 80), não serão reconhecidos como angoleiros, já que a capoeira angola que
ficou mais conhecida foi a nos moldes do mestre Pastinha. Esta capoeira, que
não é reconhecida nem como angola e nem como regional, é que mestre Pop vem
chamar de capoeira angola do meio.
Mestre Pastinha e o Centro Esportivo
de Capoeira Angola - CECA
Nascido em Salvador em 1889, mestre Pastinha aprendeu
capoeira aos oito anos de idade com um ex-escravo octogenário chamado Benedito.
Conta mestre Pastinha que aprendeu capoeira no intuito de livrar-se de um rival. À época, Pastinha era importunado por outro
menino, e sempre levava a pior, ou
seja, brigava e apanhava. Porém,
havia um senhor que vira os meninos brigarem, por várias vezes seguidas e certa
vez convidou Pastinha a aprender uma luta da qual ele nuca mais seria
incomodado pelo menino. Dito e feito. Pastinha aprendeu alguns golpes e
esquivas da capoeira, e não apanhou mais do menino, que parou de incomodá-lo.
Aos 12 anos de idade, em 1902, Pastinha
ingressou na escola de aprendizes da Marinha, onde começou a ensinar capoeira
para os colegas, onde lecionou até 1909. Como ele mesmo afirma, posteriormente
lecionou na Rua Santa Izabel, de 1910 a 1912. Algumas fontes não mencionam a
saída de mestre Pastinha da capoeira, e inclusive afirmam que o mesmo deu aulas
em 1922.
Seus alunos eram artesãos em diversos ofícios.
Pastinha afirma que ensinou a muitos
estudantes de Direito, Farmácia, Medicina, de quase todas as profissões.
Com isso observa-se a introdução paulatina no mundo da capoeira de pessoas
provenientes das classes médias e abastadas de Salvador, na figura dos
estudantes universitários, fato que também ocorreu na academia de mestre Bimba.
Mas é a partir de 1941, quando Pastinha é
convidado a mestrar a capoeira
angola, que sua história passará a ter destaque. Como foi mencionado
anteriormente, os capoeiristas da velha guarda baiana entregam a Pastinha a incumbência
de tomar a frente do Centro Esportivo de Capoeira Angola, no Pelourinho, nº 19,
na cidade de Salvador. A partir deste período, a história da capoeira passa a
ter novos rumos.
Da mesma forma que mestre Bimba regrou sua
capoeira regional, com um método de ensino bastante organizado e com uma
identidade própria, também mestre Pastinha imprime uma forte identidade a seu
trabalho no CECA. Ele impõe um método se ensino também baseado em seqüências,
uniformiza seus alunos de acordo com as cores de seu time de futebol (Ypiranga
Futebol Clube), e ao contrário de mestre Bimba, que dá ênfase ao aspecto
marcial da capoeira, Pastinha enfatiza o lúdico, a capoeira enquanto esporte,
jogo e brincadeira.
Aos poucos, o CECA passa a representar não a
capoeiragem antiga dos mestres Maré, Aberrê, Samuel Querido de Deus e outros,
mas sim a capoeira muito própria de mestre Pastinha. Isso se deu de forma
natural, inevitavelmente, já que era o mestre quem estava à frente do centro.
Porém, como mestre Pastinha era bastante influente na época, muitos
intelectuais e artistas fizeram dele o representante da capoeira angola na
Bahia. O pintor Hector Carybé e o escritor Jorge Amado são exemplos disso.
Desta forma, a capoeira angola passa a ser vista como a capoeira que mestre
Pastinha instituiu, devido seu trabalho como protagonista no Centro Esportivo
de Capoeira Angola.
O CECA tem seu auge entre as décadas de 1950
e 1960. No final da década de 1970, mestre Pastinha é forçado a fechar o
centro, pois o prédio que ocupava era público. Fechou, com a promessa de que o
mesmo seria reaberto e passaria por reformas. Porém a promessa nunca foi
cumprida e o espaço reabriu com o funcionamento de um restaurante. Mestre Pastinha
já estava com sérios problemas de visão no período e terminou a vida cego,
pobre, em um quarto cedido pelo governo de Salvador, sozinho e sem alunos,
cuidado apenas por sua esposa. Ele morre em 1981.
Durante todo período que vigoraram os mestres
Bimba e Pastinha, sempre houve forte dicotomia entre as suas capoeiras. Essa
diferenciação entre a angola e a regional, era bastante acentuada, sendo
Pastinha o representante da capoeira legítima africana, mantenedor da tradição
e mestre Bimba, o responsável pela modernização e descaracterização da mesma.
Assim era como a sociedade em geral via este movimento, e tal divisão se dava
não só entre os praticantes, mas aparecia em diversos jornais do período.
A
CAPOEIRA EM FINS DO SÉCULO XX – NOVAS VERTENTES, NOVAS DICOTOMIAS
Mestre Bimba e mestre Pastinha,
assim como os mestres “esquecidos” do passado, Aberrê, Samuel Querido de Deus,
Noronha, Maré, Pierrot e Nilton, dentre outros, foram agentes
fundamentais para o desenvolvimento da capoeira da atualidade. E foi após a
morte de mestre Bimba e mestre Pastinha - entre as décadas de setenta e oitenta
- que a capoeira iniciou uma fase de grande expansão no Brasil e no exterior.
Este processo começou lentamente ainda nos anos 1950 e 1960, quando mestres
baianos, discípulos destes dois mestres e também outros como Paizinho,
Canjiquinha e Valdemar, trocaram a Bahia por São Paulo e Rio de Janeiro em
busca de uma vida melhor. Nomes como Ananias Ferreira e Suassuna foram
responsáveis pelo início de uma grande expansão da capoeira angola e regional
pelo país.
No caso
da capoeira angola, após a morte de Pastinha esta atravessou uma fase ruim. A
defesa das “tradições” da capoeira angola, iniciada pelo mestre, sofreria uma
decadência por um momento, porém não muito, graças ao surgimento de movimentos
de “resgate” das “tradições”,
iniciado pelos mestres Moraes e Cobra mansa, na década de 1980.
No caso da regional,
ocorre também um movimento que a fortifica, porém em moldes diferenciados. É a
capoeira que passa a ser conhecida como capoeira contemporânea. Embora alguns
alunos de mestre Bimba tenham dado segmento à tradição da Regional, é a
capoeira contemporânea, nascida no Rio de Janeiro, quem vai “roubar” o cenário
e ganhar destaque como “capoeira regional” a partir da década de 1980, e
terminará por se propagar de forma muito rápida e contagiante pelo Brasil e
pelo mundo.
A capoeira contemporânea – do grupo
Senzala à mestre Camisa e a originalidade de mestre Suassuna
Na década de 1960 surge o grupo
Senzala de Capoeira no terraço dos irmãos Paulo e Rafael Flores no bairro de
Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro. Antes do grupo Senzala, já existiam na
cidade capoeiras como mestre Artur Emídio e Sinhozinho (Agenor Sampaio).
Para
o Rio, também houve a migração de capoeiras baianos, no entanto, já em 1931 -
mesma época em que Bimba começa a ensinar a sua Regional, em Salvador -, Agenor
Sampaio, mestre Sinhozinho (1900-1962), paulista de Santos, é citado na
imprensa carioca (Diário de Notícias, 1/9/1931) como competente e
carismático profissional, "animador da mocidade brasileira sportiva"
e professor de "capoeiragem ou luta brasileira". Sinhozinho cria o Club Nacional de
Gymnástica, no centro do Rio - mais tarde, vai se fixar em Ipanema -, e com o apoio da imprensa, espero ver a luta brasileira
(capoeiragem) bastante disseminada... vou organizar um torneio entre todos meus
alunos cujas bases se encontram em elaboração.
Sinhozinho
ensinava uma capoeira efetiva em termos de golpes. Em sua capoeira não existia
o ritual nem mesmo a parte musical, apenas o aspecto da luta, briga de rua e
defesa pessoal. Apesar de ter se tornado famoso no coração da nata intelectual
e artística carioca - Ipanema -, Sinhô não deixou uma linhagem na
capoeira. Algo que também aconteceu a
outras linhas que abraçaram a capoeira apenas como luta, sem música, sem
ritual, sem "jogo”.
Mesmo
não existindo no Rio de Janeiro uma capoeira nos moldes ritualísticos baianos,
meninos que moravam na zona sul do Rio, tiveram vontade de aprender esta arte. Tudo começou na década de 1960, quando os
irmãos Paulo e Rafael Flores foram passar férias em Salvador, BA, e se
matricularam na academia de mestre Bimba.
Após dois meses de treino com, voltaram ao Rio de Janeiro onde começaram
a ensinar os movimentos da capoeira aos amigos no terraço onde moravam, em Laranjeiras, bairro de
classe média do Rio de Janeiro. Esse foi o início da formação do grupo Senzala,
que desempenhou um importante papel na história da capoeira carioca e
brasileira.
Fernando, apelidado Gato, foi o
primeiro a começar a treinar sério com os irmãos em Laranjeiras. Depois
entraram mais dois: Cláudio Brasília e Marcelo, os atuais Mestres: Cláudio
Danadinho e Peixinho. Em seguida, entraram duas crianças vindas dos morros e
favelas do Rio de Janeiro, o Sorriso e o Garrincha. Por fim, Gil Velho, irmão
de Gato, integrou o grupo que, na época, ainda não era um grupo propriamente
dito.
Nesta época, o síndico do prédio
onde treinavam proibiu os treinos e esses amigos tiveram que procurar outros
lugares para treinar. Foi aí que eles começaram a procurar e descobrir alguns
redutos de capoeira no Rio e Janeiro onde tiveram contato com mestres de outras
academias do subúrbio do Rio. Pouco tempo depois apareceu Helinho, um garoto
que morava em uma casa no Cosme Velho. Os treinos destes amigos ganharam um
novo espaço, o quintal da casa do Helinho.
Ao longo de poucos anos, muitos
rapazes foram aparecendo para treinar na casa de Helinho e por causa de uma
apresentação de capoeira feita por estes meninos, foi escolhido o nome Senzala
para o grupo e também ficou decidido que eles amarrariam uma corda vermelha na
cintura. Assim nasceu o grupo Senzala com sua famosa corda vermelha.
Vários grupos de capoeira surgiram
após o grupo Senzala, seguindo os mesmos moldes de organização, e mesmo de
movimentação. A tradição de realizar batizado vem de mestre Bimba, mas a
entrega de cordas de graduação, que é efetuada por praticamente 100% dos
capoeiristas contemporâneos e mesmo por alguns angoleiros, se deve ao grupo
Senzala. É especialmente a partir de mestre Camisa, que tem um forte
aprendizado também no grupo Senzala, que a capoeira desta vertente passará a influenciar
diversas gerações.
José Tadeu Carneiro
Cardoso, ou mestre Camisa nasceu em Jacobina, no
interior do estado da Bahia, no nordeste do Brasil, de uma família de cinco
capoeiristas, sendo o quarto a aprender capoeira. Ele começou a praticar e
estudar capoeira com a idade de sete anos. Foi ensinado por seu irmão mais
velho, Camisa Roxa, aluno do Mestre Bimba. Vários anos mais tarde Camisa
mudou-se para Salvador para continuar sua educação e, ele mesmo, participar da
Academia de Mestre Bimba.
No início dos anos 70, mestre Camisa, junto com seu
irmão, rodou todo o Brasil fazendo demonstrações numa equipe de dança
folclórica, empresa Olodum Maré. A trupe permaneceu no Rio de Janeiro por
três meses e depois partiu para uma turnê pela Europa. Mestre Camisa, porém,
ficou no Rio e começou a ganhar a vida ensinando Capoeira. Conheceu alguns
integrantes do Grupo Senzala, do qual fez parte por alguns anos.
Em 1988, mestre Camisa cria a ABADÁ-Capoeira
(Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte Capoeira – Associação
Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte da Capoeira). Desde o início da
década de 80, Mestre Camisa foi trabalhando sobre os ensinamentos de Mestre
Bimba para desenvolver seu próprio estilo adicionando sua técnica e sua
metodologia. Isso aprimorou o aspecto marcial da capoeira e colocou mestre
Camisa como um mestre de capoeira de destaque no mundo.
A partir do método do ABADÁ, nos moldes de grupo
instituídos pelo Grupo Senzala, tem início um novo estilo de capoeira. Muitos
outros grupos surgem, estabelecidos a partir deste padrão. Esta capoeira,
mestre Camisa define como capoeira contemporânea. Apesar de muitos capoeiristas
não atribuírem à Camisa o protagonismo nesta vertente, o fato é que a ABADÀ
capoeira influenciou e vem influenciando inúmeros grupos e mestres por todo
mundo, a partir das inovações instituídas por mestre Camisa, neste estilo de
capoeira.
Mas a capoeira contemporânea possui também outros
personagens, que se destacam por um trabalho também autentico e inovador, nos
moldes de mestre Bimba. Um nome que merece destaque neste contexto é Reinaldo
Ramos Suassuna, o mestre Suassuna, criador do Grupo Cordão de Ouro. Para mestre
Pop, embora o Cordão de Ouro se enquadre nos padrões da capoeira contemporânea,
o grupo conseguiu imprimir uma marca própria, ou seja, um estilo muito
característico, que se diferencia da capoeira firmada pelo ABADÁ.
Suassuna começou seu aprendizado ainda garoto em
sua cidade natal, Itabuna-BA. Nesta época, freqüentava as rodas de rua, onde
estavam presentes grandes capoeiristas da região, como os Mestres Sururú,
Bigode de Arame e Maneca Brandão. Para buscar mais conhecimento, viajava
esporadicamente para Salvador, onde freqüentou os mais famosos terreiros de
capoeira da Bahia. Os mestres Bimba, Canjiquinha, Pastinha, Waldemar, Caiçara e
alguns outros, tornaram-se a referência para desenvolver seu trabalho, sendo os
dois primeiros com maior destaque e que viriam a diplomá-lo no futuro,
reconhecendo seu trabalho como Mestre.
Em 1965, Mestre Suassuna foi para São Paulo e em
1967 criou o grupo Cordão de Ouro juntamente com Mestre Brasília. O grupo
cresceu e hoje está entre os grandes grupos de capoeira contemporânea, assim
como mestre Suassuna é uma importante referencia enquanto mestre de capoeira no
mundo.
O surgimento dos grupos de capoeira, protagonizado
pelo grupo Senzala e fortificado por mestres como Camisa e Suassuna,
representam a capoeira contemporânea, que seriam uma continuidade da “idéia” de
mestre Bimba, de evoluir a capoeira de acordo com as necessidades. Este estilo
influenciou, indiretamente, também a capoeira angola. Após a morte de mestre Pastinha
- e mesmo antes-, a chamada angola teve um período de decadência e perdia
espaço para a então contemporânea. É neste cenário, que vem surgir um movimento
importante, que vai redefinir os rumos da história da capoeira angola, na
vertente de mestre Pastinha.
Mestre Moraes e a chamada “escola pastiniana”
É, portanto
após a morte de mestre Pastinha que vem ter início o trabalho de resgate e
valorização da capoeira angola propagada pelo mestre assim como a de outros
angoleiros da época. É, então em fins do século XX, mais exatamente
na década de 80, que vem surgir o movimento que atualmente é conhecido como
“escola pastiniana” ou capoeira angola ‘tradicional’.
Mestre
Moraes (Pedro Moraes Trindade), foi um grande articulador da capoeira angola
nesse contexto. Junto com seu discípulo, mestre Cobrinha Mansa (Cinésio
Feliciano Peçanha), reuniram velhos mestres e criaram uma escola de capoeira
disposta a não deixar morrer o estilo de capoeira que eles consideravam como
“tradicional”, que seria a modalidade angola.
Moraes aprendeu capoeira com mestre
João Grande e fundou em 1980 o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - GCAP.
Mestre Moraes desenvolvia seu trabalho no Rio de Janeiro, onde permaneceu entre
1970 e 1982. Com a morte de Pastinha em 1981, decidiu voltar para Salvador e
preocupado em “preservar” e valorizar uma arte quase em extinção, Moraes
mergulhou nos estudos sobre a capoeira angola. Estes dois mestres - Moraes e
Cobra Mansa, construíram um discurso político em torno da capoeira angola,
vinculando-a a uma tomada de consciência acerca de questões étnicas e sócio-econômicas.
Para eles, a capoeira angola seria uma manifestação de resistência de uma
classe dominada em relação à imposição de uma cultura de classe dominante.
Moraes e Cobra Mansa levaram a capoeira
angola para os Estados Unidos e trabalharam para a valorização de velhos
mestres que estavam sendo esquecidos no Brasil. Uma das primeiras ações de
Moraes ao retornar a Salvador foi organizar eventos com a participação de
mestres ainda em atividade como João Pequeno, Paulo dos Anjos, Virgílio
(discípulo de mestre Valdemar) e Curió assim como João Grande, que mestre
Moraes diz ter encontrado trabalhando como frentista em um posto de gasolina em
Salvador.
A capoeira angola pastiniana ou
tradicional é composta atualmente por diferentes grupos de capoeira, sendo que todos têm como
característica comum, a reivindicação do pertencimento à linhagem de
mestre Pastinha e a critica à “descaracterização” da capoeira regional, criada
por mestre Bimba e acentuada a partir da capoeira contemporânea. Estas ideias se difundiram
primeiramente entre as décadas de 40 e 70 pelo próprio mestre Pastinha e
posteriormente a partir dos anos 80, por mestre Moraes. Atualmente existem
vários grupos de capoeira que se denominam “tradicionais pela escola de mestre
Pastinha”, e detentores da “pureza da capoeira”.
Rosangela Costa Araújo, a mestra
Janja, do grupo Nzinga e iniciada na capoeira no grupo GCAP, descreve os
fundamentos desta escola de capoeira, em sua tese de doutorado em educação. Seu
estudo apresenta a capoeira angola proposta pela escola pastiniana como uma
“práxis educativa fundada na ancestralidade, na oralidade a na
comunidade”. Estes três pilares a que se
refere apontam os “princípios de pertencimento à dinâmica das tradições
africanas no Brasil, dialogando sobre a resistência negra e sua permanência nos
fazeres educacionais”. Araújo afirma que “a capoeira angola se fortalece pela
relação de fidelidade de seus praticantes aos fundamentos das suas bases
ancestrais”. A ancestralidade a que se refere, remete a mestre Pastinha
e seus ensinamentos e reflexões, sendo esta a matriz de uma descendência. A
oralidade é tida como a principal via de condução do conhecimento, pela
valorização da escola à uma técnica de educação tradicional africana. E, por
fim, comunidade se refere a grupos formados por um ou mais líderes que
partilham os mesmos códigos de pertencimento e símbolos de identidade.
A questão da identidade é algo muito
forte entre os praticantes de capoeira da escola pastiniana. Nos diversos
grupos e contextos geográficos em que estes se inserem, é fácil distingui-los
de capoeiristas de outras modalidades. Em geral tais grupos permanecem unidos
sob uma mesma tradição, obedecendo a uma mesma forma de entender os
fundamentos, as formas de cantar, tocar os instrumentos e de usar os mesmos
uniformes (em geral calça social com cinto, camiseta - que deve sempre estar
por dentro da calça-, e sapato fechado). Essa mesma forma sempre estará
remetendo ao velho mestre Pastinha. Mais que isso, a identidade se fortifica a
partir da negação à identidade da capoeira regional e contemporânea, sendo
freqüentes afirmações no sentido de que “só angola” é a capoeira “verdadeira”.
“Ilhas
de saberes”
Todas estas “capoeiras” representam
uma única manifestação, porém divida em ilhas de saberes, cada qual com suas
verdades e na maioria das vezes sem tomar conhecimento das verdades dos demais.
Ter uma atitude transdisciplinar perante este universo, não é algo tão simples
quanto parece e exige acima de tudo, um entendimento aprofundado sobre as
causas e efeitos dos trabalhos dos mestres que fizeram história na capoeira.
Mais do que conhecer a história, é preciso uma atitude de empatia ao
conhecimento do outro.
Esta é a principal contribuição que
mestre Pop traz ao universo da capoeira, através do estudo e prática da
transdisciplinaridade. Aplicar esta idéia ao mundo da capoeira significa fazer
uma revolução ideológica, mexer com os egos, com dogmas e paradigmas existentes,
em prol de uma civilização mais humanizada e menos sectária.
Neste sentido, os discípulos de
mestre Pop devem ter, enquanto educadores, o dever de disseminar esta idéia e
plantar a concórdia onde historicamente se viu discórdia. A diversidade da
capoeira deve ser sua maior riqueza e não um elemento de desumanidade entre
seus praticantes. As diferentes identidades existem e isso é um fato. Nos resta
entender que o que hoje se configura em “ilhas’, amanhã pode ser um grande
continente, onde cada um entenda a existência do outro e de si mesmo como
partes do todo.
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