segunda-feira, 23 de março de 2015

PORQUE MUITOS SÃO CONTRA QUE A CAPOEIRA SE TORNE UMA PROFISSÃO REGULAMENTADA?

Por mestre Pop

A discussão acerca da criação, por lei, da profissão de mestre e educador de capoeira, está sendo levantada em todo o país, neste momento que antecede o III Congresso Nacional Unitário de Capoeira. As posições se dividem e embora muitos sejam a favor, outros tantos são contra. Trago aqui meu testemunho e apresento as razões pelas quais sou a favor da criação, oficialmente, da profissão de capoeirista e das impressões que tenho com relação àqueles que se colocam contrários a isto.
Em minha experiência de 37 anos como educador da capoeira, nunca fui valorizado enquanto profissional dentro da minha área de atuação, justamente por não ter minha profissão regulamentada por lei. Quando digo valorizado, é reconhecido de fato, como qualquer outro profissional. Em minha carteira de trabalho, assinada desde 1978, não consta em nenhum registro a palavra capoeira, sendo que nestes anos todos trabalhei com a capoeira. Na mesma consta mestre de oficina (artesanato), professor, orientador de atividades e oficineiro (professor de dança). Porém, nunca mestre de capoeira. E vocês sabem o por quê? Simplesmente porque um mestre de capoeira não existe para o sistema, não é nada perante as instituições, sejam elas universidades, escolas ou qualquer outro tipo de instituição.
Trabalhar profissionalmente, eu já trabalho a quase 40 anos. A luta pelo reconhecimento do meu ofício é um anseio não somente meu, mas de muitos mestres de capoeira que dedicaram suas vidas a essa atividade e no entanto, não têm o reconhecimento legal de seu ofício. O que reivindico é um direito que todos os trabalhadores têm. E porque muitos são contra que nós que vivemos da capoeira, tenhamos nossa profissão reconhecida? Em minha avaliação, é porque em sua maioria não vivem da capoeira; e parte dos que vivem são contra, pois transformaram a capoeira em “poesia”, “conto”, uma coisa “mágica” e “folclórica”. Permanecem presos a um tempo passado, muitas vezes imaginário e mitificado, filosófico e ideológico; e outros, por insegurança e desconhecimento da legislação que regulamenta as profissões.
Muitos dos que se opõe a regulamentação da atividade de capoeira, têm certo temor de ficarem submetidos a um órgão fiscalizador. O fato é que isto não procede, pois uma profissão pode ser reconhecida e regulamentada sem ter de se submeter à gestão do terceiro setor (federações, confederações, conselhos e outros), mas sim apenas obter legitimidade através do registro junto ao Ministério do Trabalho. Daí vai da forma como a lei é redigida e eu particularmente defendo que a capoeira seja regulamentada a partir da perspectiva plural e transdisciplinar, contemplando-a em sua diversidade, sem privilégio de uma vertente sobre outra e sem a regência de nenhum tipo de órgão controlador e fiscalizador.
Há aqueles, que assim como eu, dependem da capoeira para viver e ainda assim não são a favor que esta se regulamente. Isso porque vivem no passado, presos a um tempo histórico que ficou para trás. Dizem que capoeira não é comércio, não é mercadoria, mas muitos fazem uso das políticas públicas de incentivo à capoeira, oferecidas pelo governo e ganham dinheiro com isso. Ganham dinheiro com pontos de cultura, prêmios de incentivo e programas semelhantes. Não estariam estes também, comercializando a capoeira? Não seria a cultura, nestes moldes, uma espécie de mercadoria? Penso que o que temos que refletir, com muita cautela e muita profundidade, é que a capoeira hoje, não é a mesma capoeira de outros tempos. Não se trata de defender a comercialização de nossa arte, longe disso, mas sim a tomada de consciência que as necessidades dos capoeiristas mudou, a realidade da capoeira mudou. A capoeira hoje já é praticada nos mais diversos países. A realidade de hoje, não é a mesma de 30 ou 40 anos passados.
Antigamente, os capoeiristas tinham que ter outra profissão para poder sobreviver, pois era muito difícil viver apenas da capoeira. Hoje este cenário está mudando aos poucos e com o reconhecimento e incentivo de sua prática por parte do estado, devido especialmente ao seu tombamento como patrimônio nacional e da humanidade, já se poderia sim viver da capoeira, se o profissional fosse reconhecido tanto quanto é a capoeira. A capoeira está sendo ensinada em praticamente todas as escolas de ensino fundamental em todo o país. Porém, nós, profissionais detentores deste precioso saber, temos de entrar nas escolas “pela janela”, pela “porta dos fundos”, e nos submetermos a trabalhar sob contrato de voluntariado. Isso tem que mudar! Isso está errado! Se a capoeira é tão importante, que é reconhecida como um patrimônio da humanidade, porque os responsáveis por propagar este saber têm que viver na invisibilidade enquanto profissionais?
Eu, nestes quase 40 anos de ensino de capoeira, nunca parei. Não fui fazer uma universidade, pois sempre acreditei na capoeira como profissão. Fica evidente para mim neste momento, que a grande maioria dos praticantes de capoeira que são contra a formalização da profissão, não dependem da capoeira para viver. Não são verdadeiros profissionais da capoeira, mas sim profissionais de outras áreas que também dão aulas de capoeira, muitas vezes por prazer e hobbie. São advogados, professores de educação física, de história, geografia, médicos, sociólogos, etc. Estes, quando perguntados sobre qual a sua profissão, sem sombra de dúvidas responderão: professor universitário, advogado, médico, dentista, mesmo que dêem aulas de capoeira, para se satisfazerem enquanto militantes da capoeira.
Não me oponho de forma alguma a quem dá aulas de capoeira por identidade, pois reconheço o valor destes profissionais e da contribuição que dão à capoeira, mesmo que não dependam da mesma para viver. Também não me oponho, de forma alguma, que os profissionais da capoeira façam universidade. O que me indigna é ver e ouvir pessoas que tem já suas profissões e que não vivem da capoeira, se posicionarem contrários a sua regulamentação, sem ao menos terem argumentos sólidos para suas posições. Estes são contra, pois não são relegados à informalidade, como quem vive exclusivamente desta atividade.
Há muitos casos em nosso meio, de professores de capoeira que só dão aulas em determinadas escolas por serem profissionais da área de educação física.  Estes, com o devido respeito, não deveriam se considerar profissionais da capoeira, pois o que lhe garante o emprego é o diploma universitário e não o saber popular e ancestral tão citado e teoricamente valorizado por muitos, inclusive pelo estado. O saber dos mestres não vale nada para a sociedade e lamentavelmente, em muitos casos, nem mesmo para os próprios capoeiristas. O que vale é o diploma universitário. Temos que mudar isto!
Imaginem o que é você dar aulas de capoeira em uma instituição formal e ter de ser registrado como oficineiro de dança. Ter de ser submetido à diversos cursos de capacitação em dança. A resposta que sempre ouvi, quando contestava ter de me capacitar em outra área, é que ser mestre de capoeira não é profissão, que não existe este quadro na instituição, dentre outras. Por outra, sempre que precisei preencher uma ficha, seja no comercio ou banco, quando perguntado sobre qual minha profissão, me vinha a duvida no que responder! E por quê? Simplesmente por que minha profissão não é reconhecida legalmente.
Acho que todos têm o direito de não querer ser profissionais, desde que não privem aqueles que precisam deste direito. Como falei anteriormente, capoeira é minha profissão. Vivo minha vida inteira da capoeira. Só quero ser reconhecido como profissional. Quem não quiser, não seja. Não tenho a ilusão de que a regulamentação da profissão trará dinheiro aos capoeiristas ou aposentadoria como muitos pensam. Também tenho plena consciência da importância de políticas públicas e programas sérios para efetivar melhores condições de trabalho aos capoeiristas. Mas estou convicto de que a criação por lei da profissão de capoeirista dará dignidade para muitos que vivem exclusivamente desta arte.
A forma como a regulamentação da atividade de capoeira será feita, só depende do coletivo da capoeira. Assim como depende do coletivo, discutir quais as políticas públicas que queremos e de que modo vamos conduzir este processo. O que me faz seguir firme e forte na luta é a certeza de que, a grande maioria dos companheiros de luta, despertaram para a necessidade do reconhecimento e valorização daqueles que detém o conhecimento da capoeira. A capoeira foi retirada do código penal brasileira em 1940; a roda da capoeira e os saberes dos mestres foram tombados como patrimônio cultural brasileiro em 2008; e ainda a mesma roda de capoeira foi considerada pela UNESCO em 2014, como patrimônio cultural da humanidade. No entanto, nós, que contemos e perpetuamos este conhecimento e somos responsáveis pela perpetuação deste patrimônio, continuamos na invisilibilidade, relegados á políticas paliativas e assistencialistas.

Somos nós, mestres e professores de capoeira, responsáveis pela manutenção e salvaguarda deste patrimônio. Reconhecer-nos enquanto profissionais é o mínimo que o governo e o estado brasileiro têm de fazer. É fundamental que esta questão seja tratada com toda a seriedade e responsabilidade, por todos aqueles que vivem ou não da capoeira, pois nossas ações de hoje, garantirão o destino da arte que tanto amamos. Este é o meu testemunho.

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