Por mestre Pop
A
discussão acerca da criação, por lei, da profissão de mestre e educador de
capoeira, está sendo levantada em todo o país, neste momento que antecede o III
Congresso Nacional Unitário de Capoeira. As posições se dividem e embora muitos
sejam a favor, outros tantos são contra. Trago aqui meu testemunho e apresento
as razões pelas quais sou a favor da criação, oficialmente, da profissão de
capoeirista e das impressões que tenho com relação àqueles que se colocam
contrários a isto.
Em
minha experiência de 37 anos como educador da capoeira, nunca fui valorizado enquanto
profissional dentro da minha área de atuação, justamente por não ter minha
profissão regulamentada por lei. Quando digo valorizado, é reconhecido de fato,
como qualquer outro profissional. Em minha carteira de trabalho, assinada desde
1978, não consta em nenhum registro a palavra capoeira, sendo que nestes anos todos trabalhei com a capoeira. Na
mesma consta mestre de oficina
(artesanato), professor, orientador de atividades e oficineiro (professor de dança). Porém,
nunca mestre de capoeira. E vocês
sabem o por quê? Simplesmente porque um mestre de capoeira não existe para o
sistema, não é nada perante as instituições, sejam elas universidades, escolas
ou qualquer outro tipo de instituição.
Trabalhar
profissionalmente, eu já trabalho a quase 40 anos. A luta pelo reconhecimento
do meu ofício é um anseio não somente meu, mas de muitos mestres de capoeira
que dedicaram suas vidas a essa atividade e no entanto, não têm o
reconhecimento legal de seu ofício. O que reivindico é um direito que todos os
trabalhadores têm. E porque muitos são contra
que nós que vivemos da capoeira, tenhamos nossa profissão reconhecida? Em minha
avaliação, é porque em sua maioria não vivem da capoeira; e parte dos que vivem
são contra, pois transformaram a capoeira em “poesia”, “conto”, uma coisa “mágica”
e “folclórica”. Permanecem presos a um tempo passado, muitas vezes imaginário e
mitificado, filosófico e ideológico; e outros, por insegurança e
desconhecimento da legislação que regulamenta as profissões.
Muitos
dos que se opõe a regulamentação da atividade de capoeira, têm certo temor de
ficarem submetidos a um órgão fiscalizador. O fato é que isto não procede, pois
uma profissão pode ser reconhecida e regulamentada sem ter de se submeter à
gestão do terceiro setor (federações, confederações, conselhos e outros), mas
sim apenas obter legitimidade através do registro junto ao Ministério do Trabalho.
Daí vai da forma como a lei é redigida e eu particularmente defendo que a
capoeira seja regulamentada a partir da perspectiva plural e transdisciplinar, contemplando-a
em sua diversidade, sem privilégio de uma vertente sobre outra e sem a regência
de nenhum tipo de órgão controlador e fiscalizador.
Há
aqueles, que assim como eu, dependem da capoeira para viver e ainda assim não
são a favor que esta se regulamente. Isso porque vivem no passado, presos a um
tempo histórico que ficou para trás. Dizem que capoeira não é comércio, não é
mercadoria, mas muitos fazem uso das políticas públicas de incentivo à
capoeira, oferecidas pelo governo e ganham dinheiro com isso. Ganham dinheiro
com pontos de cultura, prêmios de incentivo e programas semelhantes. Não
estariam estes também, comercializando a capoeira? Não seria a cultura, nestes
moldes, uma espécie de mercadoria? Penso que o que temos que refletir, com
muita cautela e muita profundidade, é que a capoeira hoje, não é a mesma
capoeira de outros tempos. Não se trata de defender a comercialização de nossa
arte, longe disso, mas sim a tomada de consciência que as necessidades dos
capoeiristas mudou, a realidade da capoeira mudou. A capoeira hoje já é
praticada nos mais diversos países. A realidade de hoje, não é a mesma de 30 ou
40 anos passados.
Antigamente,
os capoeiristas tinham que ter outra profissão para poder sobreviver, pois era
muito difícil viver apenas da capoeira. Hoje este cenário está mudando aos
poucos e com o reconhecimento e incentivo de sua prática por parte do estado,
devido especialmente ao seu tombamento como patrimônio nacional e da humanidade,
já se poderia sim viver da capoeira, se o profissional fosse reconhecido tanto quanto
é a capoeira. A capoeira está sendo ensinada em praticamente todas as escolas
de ensino fundamental em todo o país. Porém, nós, profissionais detentores
deste precioso saber, temos de entrar nas escolas “pela janela”, pela “porta
dos fundos”, e nos submetermos a trabalhar sob contrato de voluntariado. Isso
tem que mudar! Isso está errado! Se a capoeira é tão importante, que é
reconhecida como um patrimônio da humanidade, porque os responsáveis por
propagar este saber têm que viver na invisibilidade enquanto profissionais?
Eu,
nestes quase 40 anos de ensino de capoeira, nunca parei. Não fui fazer uma
universidade, pois sempre acreditei na capoeira como profissão. Fica evidente
para mim neste momento, que a grande maioria dos praticantes de capoeira que
são contra a formalização da profissão, não dependem da capoeira para viver.
Não são verdadeiros profissionais da capoeira, mas sim profissionais de outras
áreas que também dão aulas de capoeira, muitas vezes por prazer e hobbie. São
advogados, professores de educação física, de história, geografia, médicos,
sociólogos, etc. Estes, quando perguntados sobre qual a sua profissão, sem
sombra de dúvidas responderão: professor universitário, advogado, médico,
dentista, mesmo que dêem aulas de capoeira, para se satisfazerem enquanto
militantes da capoeira.
Não
me oponho de forma alguma a quem dá aulas de capoeira por identidade, pois reconheço
o valor destes profissionais e da contribuição que dão à capoeira, mesmo que
não dependam da mesma para viver. Também não me oponho, de forma alguma, que os
profissionais da capoeira façam universidade. O que me indigna é ver e ouvir pessoas
que tem já suas profissões e que não vivem da capoeira, se posicionarem
contrários a sua regulamentação, sem ao menos terem argumentos sólidos para
suas posições. Estes são contra, pois não são relegados à informalidade, como
quem vive exclusivamente desta atividade.
Há
muitos casos em nosso meio, de professores de capoeira que só dão aulas em determinadas
escolas por serem profissionais da área de educação física. Estes, com o devido respeito, não deveriam se
considerar profissionais da capoeira, pois o que lhe garante o emprego é o
diploma universitário e não o saber popular e ancestral tão citado e
teoricamente valorizado por muitos, inclusive pelo estado. O saber dos mestres
não vale nada para a sociedade e lamentavelmente, em muitos casos, nem mesmo
para os próprios capoeiristas. O que vale é o diploma universitário. Temos que
mudar isto!
Imaginem
o que é você dar aulas de capoeira em uma instituição formal e ter de ser
registrado como oficineiro de dança. Ter
de ser submetido à diversos cursos de capacitação em dança. A resposta que
sempre ouvi, quando contestava
ter de me capacitar em outra área, é que ser
mestre de capoeira não é profissão, que não
existe este quadro na instituição, dentre outras. Por outra, sempre que
precisei preencher uma ficha, seja no comercio ou banco, quando perguntado
sobre qual minha profissão, me vinha a duvida no que responder! E por quê?
Simplesmente por que minha profissão não é reconhecida legalmente.
Acho
que todos têm o direito de não querer ser profissionais, desde que não privem
aqueles que precisam deste direito. Como falei anteriormente, capoeira é minha
profissão. Vivo minha vida inteira da capoeira. Só quero ser reconhecido como
profissional. Quem não quiser, não seja. Não tenho a ilusão de que a
regulamentação da profissão trará dinheiro aos capoeiristas ou aposentadoria
como muitos pensam. Também tenho plena consciência da importância de políticas
públicas e programas sérios para efetivar melhores condições de trabalho aos
capoeiristas. Mas estou convicto de que a criação por lei da profissão de
capoeirista dará dignidade para muitos que vivem exclusivamente desta arte.
A
forma como a regulamentação da atividade de capoeira será feita, só depende do
coletivo da capoeira. Assim como depende do coletivo, discutir quais as
políticas públicas que queremos e de que modo vamos conduzir este processo. O
que me faz seguir firme e forte na luta é a certeza de que, a grande maioria
dos companheiros de luta, despertaram para a necessidade do reconhecimento e
valorização daqueles que detém o conhecimento da capoeira. A capoeira foi
retirada do código penal brasileira em 1940; a roda da capoeira e os saberes
dos mestres foram tombados como patrimônio cultural brasileiro em 2008; e ainda
a mesma roda de capoeira foi considerada pela UNESCO em 2014, como patrimônio
cultural da humanidade. No entanto, nós, que contemos e perpetuamos este
conhecimento e somos responsáveis pela perpetuação deste patrimônio,
continuamos na invisilibilidade, relegados á políticas paliativas e assistencialistas.
Somos
nós, mestres e professores de capoeira, responsáveis pela manutenção e salvaguarda
deste patrimônio. Reconhecer-nos enquanto profissionais é o mínimo que o
governo e o estado brasileiro têm de fazer. É fundamental que esta questão seja
tratada com toda a seriedade e responsabilidade, por todos aqueles que vivem ou
não da capoeira, pois nossas ações de hoje, garantirão o destino da arte que
tanto amamos. Este é o meu testemunho.